"Este relato foi encontrado em um diário abandonado à beira de um rio cujo nome é desconhecido. O livreto estava encharcado mas a tinta permanecia intacta"
"Se arrependimento matasse... Mas eu já morri.
Eu me lembro bem DEMAIS como foi... Naquela noite maldita em que eu pretendia acabar com tudo... Faz cinqüenta anos, e eu me lembro bem demais...
Voltei para casa às 3 h da manhã, dei um beijo em meus pais, que já deviam estar no terceiro sono, e me dirigi à rodoviária. Com R$ 10,00 na mão, peguei o ônibus que levava os operários que trabalhavam de madrugada para as fábricas.
Nem sei como aconteceu, mas assim que avistei a Ponte Maior gritei para pararem o ônibus, o motorista se assustou e quase tombou no Rio Esmeralda. Eu desci, ainda vestindo o lindo vestido branco da festa de debutante da Keila. É incrível como certas pessoas tem o poder de te seduzir e te fazer sentir culpada por tudo de ruim que acontece. Era o caso de Keila, mas eu não conseguia escapar dela, sempre com uma fofoca idiota e convidativa... Mas eu disse chega. Nunca mais eu suportaria a Keila nem mais ninguém. Chega de sorrisos amarelos e uma felicidade fingida. Chega. Chega de ninguém enxergar que havia algo de errado comigo. Chega. Com mais raiva do que tristeza eu sentei na beirada da ponte.
Fiquei olhando o verde-esmeralda da água. O ônibus arrancou e eu fiquei no silêncio. Meus olhos se encharcaram. Pensei no que ia fazer, e me pareceu a melhor solução. A sociedade não estava pronta para entender pessoas como eu e eu não ia tentar mover meio mundo se ele não me merecia. Minha sapatinha bordada à prata caiu na água e como que para apanhá-la, eu pulei. Perdi os sentidos rapidamente, mas não antes de recolocar a sapatilha, estavam tendo investigações sobre um barco que virara sem motivo aparente alguns metros à frente, e se iam me encontrar, que me encontrassem bem apresentável.
Algo estranho estava acontecendo. Abri os olhos. Continuava debaixo d'água esverdeada, mas o ar não me fazia falta. Subi e tentei respirar, mas isso me deixou zonza. Voltei para debaixo d'água e alguém me chamou. Olhei para baixo... e foi aí que tudo começou.
Uma multidão me esperava, rostos extremamente pálidos, alguns um pouco apodrecidos pela água, sorriam para mim e uma mulher se adiantou, dizendo:
- Siga-nos! Em breve tudo será revelado...
À frente, de um livro limoso, emanava uma luz verde muito forte e eu me aproximei como se algo me dissesse que ali estavam as respostas de que eu precisava. Não sei quanto tempo fiquei parada olhando o livro. Mas ao final eu sabia de tudo. Eu compreendia tudo.
Era uma maldição, há mais de cinco séculos uma garota se matara neste rio e jurara vingança ao mundo. Assim, durante um século, várias pessoas se mataram no rio, e todas ficaram presas em seu leito e, quando já haviam cem almas aprisionadas, a cada alma que "entrava", uma era libertada. Foi um choque, mas não tão grande quanto o que seria se eu estivesse em outras condições.
Como único passatempo, tínhamos um jogo estranho, com certos peixinhos azuis. Nunca gostei de jogos em grupo. As pessoas nunca me entenderam... Então eu fico escrevendo neste diário, brinde da festa da Keila. A água não borra a tinta... eu agradeço por isso...
Estou aqui hoje, e ainda faltam cinqüenta anos para que chegue a minha vez de ir embora. Minha pele está corroída pela água.
Eu só queria não ter feito o que fiz. Queria ter mais uma chance. Queria poder estar em casa agora. Dormir o sono que nunca mais chegará. Viver a minha vida "terrível", mas viver. Ou morrer de verdade. Ser atropelada ou qualquer coisa do gênero. Queria não ser um corpo consciente, sem vida."
Potter